Pesquisadora metodista diz que o movimento gospel está mudando o modo de ser evangélico
Desde que o movimento pentecostal brasileiro tornou-se fenômeno de massa, no último quarto do século 20, especialistas das mais diversas áreas têm se debruçado sobre a Igreja Evangélica com lupas de pesquisador. O espantoso crescimento do segmento, que pulou de um traço estatístico para a posição de segundo maior grupo religioso do país, tem sido discutido e explicado de muitas maneiras – quase todas, diga-se de passagem, incompletas ou mesmo parciais. Por isso, trabalhos como o da professora Magali do Nascimento Cunha ganham relevância. Jornalista, doutora em Ciências de Comunicação e mestre em Memória Social e Documento, ela é docente em diversos cursos da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista da Universidade Metodista de São Paulo e atua ainda como palestrante e conferencista. Mas observa o cenário evangélico nacional com ainda mais conhecimento de causa, já que é membro da Igreja Metodista do Brasil e do Comitê Central do Conselho Mundial de Igrejas (CMI).
Ninguém pense, contudo, que Magali faz algum tipo de concessão ao corporativismo. Ao contrário – a pesquisadora não poupa as críticas que julga necessárias à Igreja contemporânea. No seu mais recente livro, A explosão gospel – Um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico no Brasil (Mauad Editora), Magali constrói uma tese segundo a qual esse movimento chamado gospel fundamenta-se não apenas na lógica do mercado, mas também numa série de novos comportamentos e maneiras de enxergar e praticar o Evangelho. “Vivemos o surgimento de uma cultura religiosa nova”, afirma a professora. Segundo ela, a explosão gospel criou tantas demandas que afetou até mesmo a teologia cristã deste século 21. Entender este multifacetado universo de fé e todos os seus desdobramentos talvez seja tarefa para gerações. Mas nesta entrevista, Magali Cunha aponta alguns caminhos.
CRISTIANISMO HOJE – Como a senhora define a cultura gospel?
MAGALI DO NASCIMENTO CUNHA – Vivemos o surgimento de uma cultura religiosa nova, um jeito de ser diferente daquele construído pelos evangélicos brasileiros ao longo de sua história. Novos elementos foram adicionados como resposta ao tempo presente, que é fortemente marcado pelas culturas da mídia e do mercado, e pelo crescimento de novos movimentos evangélicos, principalmente o pentecostalismo. O movimento musical chamado gospel resultou deste processo sócio-religioso e abriu caminho para outras expressões. Isso quer dizer que testemunhamos uma ampliação, sem precedentes, do mercado religioso e de formas religiosas mercadológicas. Há também uma relativização da negação do mundo, tão cara aos evangélicos brasileiros – o corpo é valorizado, assim como a diversão. Com isso, temos uma nova cultura experimentada, um novo modo de ser evangélico: privilégio à expressão musical, envolvimento no mercado e espaço para o lazer e o entretenimento.
O termo “gospel” não é abrangente demais para abrigar tantos elementos e manifestações?
Na verdade, podemos dizer que as diferenças que existem entre os grupos evangélicos estão bastante “sufocadas” por essa forma cultural. Uso o termo “gospel” para definir esse modo de vida porque ele emerge do fenômeno que ganhou corpo nos anos 90 – o movimento musical que detonou um processo e configurou algo muito maior. Surgiu uma forma cultural, um modo de vida gospel. Ele não é uma expressão organizada, delimitada; mas resulta do cruzamento de discursos, atitudes e comportamentos entre si e com a realidade sociopolítica e histórica.
Mas existem traços comuns entre todas essas manifestações?
Há, principalmente, três elementos. Em primeiro lugar, a busca de modernidade e inserção dos evangélicos na lógica social da tecnologia, da mídia, do mercado e da política. Numa segunda perspectiva, tivemos as transformações na forma de cultuar e na ética de costumes de um significativo número de igrejas. Veja que atualmente não é mais possível identificar o que é um culto batista, ou um culto metodista, ou um culto presbiteriano. Identificamos, em nossas pesquisas, uma só forma de cultuar com as mesmas características. E, em terceiro lugar, um discurso comum que privilegia temas como “vitória” e “poder”, com ênfase no aqui e agora, bem diferente da tradição evangélica, cuja pregação privilegiava temas como o céu e a segunda vinda de Cristo como compensação pelos sofrimentos do presente. Essa produção de cultura alcançou uma amplitude que perpassa, senão todas, a grande maioria das igrejas e denominações evangélicas brasileiras.
O louvor tem importância cada vez maior nos cultos. Por que as igrejas têm dado tanto valor à música?
Quem é Deus e quem é Jesus na maioria das canções? A maior parte das composições traz imagens da teofania monárquica do Antigo Testamento. Assim, Deus e Jesus são intensamente relacionados a imagens de reinado, majestade, glória, domínio e poder. Nesta linha, ganha novo sentido a figura dos levitas, que passam a ser destacados e traduzidos na contemporaneidade como “os ministros de louvor”, terminologia assumida nas igrejas. Disso resulta também o estabelecimento de uma hierarquia de ministérios. Há maior destaque aos levitas, e isso pode ser observado no lugar que ocupam no culto. Quem toca e canta é considerado ministro; já quem realiza outras atividades de serviço raramente é apresentado e destacado dessa maneira.
Essa nova cultura gospel tem espaço para a ética cristã?
Vivemos hoje uma forte crise de ética cristã quando privilegiamos um modo de ser baseado no “eu” e na experiência. Isso é totalmente incompatível com o Evangelho. E a coisa se agrava quando aprendemos que ser cristão é consumir bens e serviços religiosos e divertir-se não como mera assimilação da cultura do mercado, mas como expressão religiosa. Quer dizer, a cultura gospel permitiu aos evangélicos brasileiros a inserção de elementos profanos na forma de viver sua fé e de relacionar-se com o sagrado.
Em seu livro Explosão gospel, a senhora diz que o fenômeno mercadológico mudou o jeito de ser evangélico no país. Afinal, o que mudou?
Mercado religioso não é novidade. A oferta de produtos relacionados à religião e à fé sempre existiu. O que ocorre hoje é que o mundo vive um momento em que o mercado é o centro da vida socioeconômica, determina políticas e relações. E esse momento tem reflexos no cristianismo quando, por exemplo, experimentamos um crescimento sem precedentes do mercado religioso e os cristãos se tornam segmento de mercado.
Qual o efeito disso sobre a teologia evangélica?
Observamos hoje o surgimento de teologias que resultam deste predomínio da lógica do mercado na cultura dos povos. A teologia da prosperidade, que apregoa o sucesso material, especialmente o financeiro, como resultado da bênção de Deus, é fruto disso. A confissão positiva, do “eu que tudo pode” – então, a bênção passa a ser resultado do esforço pessoal –, e a noção da guerra espiritual, que combate as forças espirituais malignas que prejudicam o homem, também. Mas não é só isso. Existe a idéia de que, ao comprar um produto de orientação cristã, o crente não está só adquirindo um bem, mas chegando mais perto de Deus. Ou seja, o caráter sagrado atribuído aos produtos cristãos os tornam uma espécie de mediadores entre Deus e o consumidor. Por isso, as pessoas compram adesivos para que seu carro seja protegido do mal ou adquirem camisetas que vão guardá-las de infortúnios. Isso sem falar em gente que compra um CD daquele cantor “abençoado”, acreditando que ouvir as músicas pode até proporcionar uma cura.
O individualismo é uma marca do cristianismo contemporâneo?
Ocorre hoje uma exacerbação desse individualismo porque a cultura do mercado que predomina entre os povos bebe dessa fonte, o que se reflete na religiosidade evangélica. Por isso, as canções nunca trouxerem tanto o predomínio do “eu”, do gozo espiritual intimista; ao mesmo tempo, muito pouco ou quase nada se fala do valor do outro, do serviço, da partilha e da mutualidade.
O surgimento das chamadas comunidades evangélicas, cujo apogeu ocorreu nos anos 1980, foi determinante para o surgimento da cultura gospel?
As igrejas alternativas surgem como uma reação ao protestantismo tradicional e ao seu comportamento restritivo. Por isso eram, e ainda são, majoritariamente jovens e modernas. Esse fenômeno contribuiu, sim, para a formação da cultura gospel, mas não podemos dizer que é responsável. Foi um elemento a mais. Mas vale dizer que este vanguardismo das igrejas alternativas nunca abdicou dos elementos básicos da cultura evangélica no Brasil – apenas deu-lhes nova roupagem.
Hoje, é comum as igrejas copiarem modelos eclesiásticos considerados de sucesso, sobretudo os grandes ministérios liderados por dirigentes carismáticos. Qual o papel da mídia nisso?
A cultura da mídia, que é um elemento forte nas sociedades contemporâneas, promove uma padronização de discursos e práticas. Temos um padrão para cantar, para se comportar, para falar de Deus e da Bíblia. Isso porque as grandes igrejas e os grupos mais expressivos, com suas respectivas lideranças, conseguem espaço na mídia e viram modelos a serem copiados ou adaptados para a realidade de um sem-número de comunidades.
Qual a crítica que a senhora faz ao uso que os evangélicos têm feito da mídia no Brasil?
A mídia evangélica é extremamente comercial. Ela reproduz a lógica da mídia secular e não faz diferença no meio. É diferente de mídias cristãs de outros países, que produzem documentários, lideram campanhas de cunho social, exibem mensagens bastante criativas relacionadas ao calendário cristão. Ainda não assisti a nenhuma programação desta natureza em nosso país. O programa mais criativo que assisti nos últimos tempos saiu do ar – era o 25ª hora, da Igreja Universal, que debatia temas da conjuntura com especialistas e pessoas cristãs que os relacionavam ao desafio do Evangelho. Os poucos programas de debates nas rádios ou TVs evangélicas de hoje são apenas doutrinadores do grupo que os lidera. O debate já tem conclusão antes de terminar. O tom evangelístico, de buscar a adesão de novos fiéis à proposta evangélica, é coisa do passado na mídia. Os programas não são mais dirigidos aos não-cristãos, mas sim a quem é crente, ligado a qualquer igreja, para receber doutrinação que corresponde ao discurso da cultura gospel e as ofertas dos produtos de quem lidera aquele veículo. A divulgação dos locais de reuniões públicas dos grupos condutores da programação é apenas um apêndice à veiculação massiva de conteúdo musical, já que o mercado fonográfico do segmento é uma força. Os demais aspectos da programação – debates, sessões de oração, estudos e sermões – não têm aquele cunho proselitista clássico, mas é carregado de ênfase doutrinária para conquistar novos espectadores e consumidores para os produtos oferecidos.
A Renovação Carismática Católica assemelha-se ao pentecostalismo pela espontaneidade litúrgica e na ênfase nos dons do Espírito Santo; contudo, é um movimento bastante conservador, por exemplo, na devoção a Maria. A senhora acredita que os pontos de identificação entre os dois grupos podem chegar ao ponto de superação das diferenças teológicas?
Ainda não tenho elementos para falar sobre este fenômeno de maneira mais sistemática, mas esta é uma realidade. O fato é que a Igreja Católica Romana têm perdido membros durante as últimas décadas para o pentecostalismo, assim como as igrejas evangélicas históricas. A Renovação Carismática Católica tem buscado práticas de inspiração pentecostal para preservar sua membresia, atrair de volta os fiéis perdidos e conquistar outros. Marcelo Rossi e os outros padres cantores, assim como a Rede Canção Nova, são fruto desta conjuntura. A liturgia é chave deste processo. Não é possível ainda fazer previsões, mas uma intuição me leva a dizer que não podemos esperar a superação das diferenças. Ao contrário, deve haver um reforço da competição, pois membresia e números são chaves motivadoras de tal processo. O tom da visita de Bento XVI ao Brasil em 2007 deixou isso claro.
A flutuação de membros é fenômeno comum nas igrejas evangélicas deste início de século, ao contrário da valorização do pertencimento que se observava até bem pouco tempo. Quais os motivos que levam a esta infidelidade denominacional?
Vários sociólogos da religião têm estudado este fenômeno e o denominado “trânsito religioso”. Eles indicam que é fruto deste fluxo de modernidade que experimentamos na contemporaneidade – o individualismo, a busca extrema da satisfação pessoal imediata, a valorização do descartável. As pessoas transitam por igrejas em busca da satisfação pessoal imediata. Descartam experiências em busca de outras mais intensas e interessantes, e o descompromisso dá o tom deste processo.
A senhora é membro da Igreja Metodista, denominação fortemente envolvida com o diálogo ecumênico. No Brasil, o ecumenismo é veementemente rechaçado por igrejas de linha pentecostal. Esta rejeição deve ser atribuída ao desconhecimento acerca do movimento ecumênico ou trata-se mesmo de preconceito?
Um dos mais fortes impedimentos para o ecumenismo é a indiferença ecumênica. Há, sim, o anti-ecumenismo, a manifestação contrária de gente que é contra e diz por quê. Mas o que é maior não é a oposição declarada, e sim a indiferença à necessidade da busca de unidade entre os cristãos. Podemos chamar isso de “convivência tranqüila” com as divisões. Entre as razões da rejeição ao ecumenismo, podemos fazer uma pequena lista. Existem, claro, as divergências teológico-doutrinárias que as igrejas enfrentam. Muita gente não sabe o que é ecumenismo, não conhece a sua história – preferem dizer que é “coisa da Igreja Católica”. Há ainda o preconceito, o exclusivismo religioso, o medo do diferente e a crise de identidade. Mas, se sabemos quem somos, temos certeza dos nossos valores e do que dá sentido à nossa fé, como podemos ter medo de sermos influenciados? Então, vou aprender e reter o que é bom.
Qual é a viabilidade do diálogo ecumênico em um universo religioso tão multifacetado como o brasileiro?
O diálogo ecumênico é algo de Deus. Pluralismo religioso sempre existiu e vai continuar existindo. Enquanto as religiões, principalmente as igrejas, não dialogarem e superarem suas divergências, o mundo não vai crer, como disse Jesus. Isso não quer dizer deixar de ser quem é e assumir outro jeito de ser. Diversidade é coisa boa. Deus permite isso porque quer que seja assim. A questão é sabermos lidar com isso e aprendermos. Precisamos que as igrejas dialoguem e cooperem entre si, a partir do que têm em comum, neste mundo tão dividido por natureza. As igrejas não podem ser mais uma fonte de divisão para este mundo esfacelado. O mundo não vai crer enquanto o crescimento evangélico for baseado em competição e divergências.
Revista Cristianismo Hoje
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